Não era tarde demais, entrou na lancheria e pediu uma torrada, observava o vento e a chuva através da janela. Não sabia o que ouvir, seus dedos rodavam atrás de alguma coisa que pudesse fazer sentido. Encontrou Miles Davis; nunca até então conseguira ouvir uma música dele até o fim, não entendia como algo podia arranhar e acariciar simultâneamente. Dessa vez ele ouviu até as últimas notas alcançarem seu silêncio.
Da janela viu uma mulher, um mendigo e dois cachorros. O mendigo, ironicamente, lia o jornal, mancava e parecia estar com muito frio, estava sem roupas de lã. Era um dia de inverno. Havia um aquário no bar, iluminado com uma luz verde escura fraca. Haviam alevinos recém nascidos junto ao solo, era preciso se aproximar para enxergar, buscar foco.
Ninguém se olhava no bar quando entrou um homem já tirando seu casaco, ele trabalhava alí, entrou sem acenar ou dar bom dia às suas colegas, apenas dobrou seu casaco cuidadosamente e colocou guarda napos nas mesas. E se fosse seu último dia? Quem choraria?
Ouvindo Miles pensou que nem tudo precisa ser de vida ou morte, que a vaidade o levara até então a não sair do lugar. O bar estava vazio, a rua vazia, às mesas muitos fantasmas, sentiu-se bem com aquela falta toda que o preenchia, sentiu-se vulnerável, e sabia muito bem como essa sensação lhe era normal, mas não hoje. Pensava que não precisava de ninguém até então. Sua vida, como agora a via, seria uma fuga cansativa. Entendeu que ele não era nenhum homem. Se perdeu, voltou, mergulhou na ilusão de que esperaria até ser achado e pode submergir de sua vertigem crônica. Naquele momente havia acordado.