
Quarta feira, limbo da semana, meio caminho da vida. Acordo 7 hs e 30 min. Meu destino é um centro de atendimento para crianças no meio da vila Pinto. Sinto preguiça, eu sei por onde devo passar até chegar lá. É lixo, ruelas sem nome, crianças sem pais, passos entre o esgoto e o esquecimento. Chego no horário, mas elas iriam assistir à um filme da Walt Disney chamado "encantada". O filme inicia como desenho animado e trata de uma princesa que está prestes a se casar, quando uma bruxa a joga numa cachoeira com um fundo abismal, um lugar, segundo as palavras da bruxa, onde não existe "feliz para sempre". Ela é lançada à realidade. O que era uma princesa desenhada vira uma mulher de carne e osso (claro que a beleza se mantém). Ela sai de um bueiro e descobre um lugar barulhento, lotado, confuso, onde as pessoas não sorriem umas para as outras ou ficam cantando enquanto "passeiam" na rua. Aliás, hoje ninguém mais passeia!
Um professor me chamou para entrar no "cinema" e ver esse filme, uma criança me convidou para sentar ao seu lado. Eu sentei. Do meu lado haviam outras três, elas não pareciam interessadas no filme. Para minha surpresa elas queriam "ir conversar comigo" e disputavam entre sí quem iria primeiro (para quem não sabe, eu sou psicólogo). O que me intrigou é que a vida delas é muito pesada, então, segundo minha imaginação, elas, supostamente, deveriam querer mergulhar naquele filme. Viajar para aquele mundo protegido e ficar lá o máximo possível, naquela tela onde até o real era cheio de fantasia. Mas não! Elas queriam conversar comigo. Pasmei! Por conta desse pedido, pensei que a fantasia não preenche a carência de ninguém, apenas ilude, elas estavam dizendo que queriam contato humano verdadeiro, e não um encanto. Entendi também que amar é isso, desalojar-se desse lugar feito de espera, de ideais e imagens, é viver a dor de não ser para sempre o príncipe ou a princesa.
Pensei que estava sendo bem mais difícil eu querer encarar a realidade do que eles próprios; por cinquenta minutos senti vontade de ver o filme, esquecer daquele mundo imperfeito ao redor, me esconder e ser criança, e consegui ser por algum tempo. Depois fui chamado por eles da terra do nunca e foi muito bom voltar. Trabalhar numa vila com crianças mal cuidadas me faz querer poder dar todo meu carinho, esquecer um pouco da técnica e da neutralidade. É uma retroalimentação. Lá eu tenho a oportunidade de poder resgatar a criança em mim também, que, como eles teve a alma machucada. Uma criança com muito medo de ser rejeitada ou amada. Ao ser um pouco pai, um pouco amigo e depois terapeuta, alguma capacidade adormecida é despertada em mim.
Confirmei que ninguém precisa ser de vila para entender o sentimento de abandono, descuido ou agressão por parte de pais. Que criança não sentiu (em diferentes medidas, é claro!) desamparo e fragilidade como essas? A diferença é que para essas, há falta ou excesso de quase tudo. Elas aprendem cedo demais que "feliz para sempre" é uma ilusão. Por isso não queriam ver o filme. Elas entendem precocemente que felicidade é agora ou talvez nunca, é algo que urge sem momento certo; depende da sorte e é sempre por pouco. Um saber que poucos "adultos" realmente adquirem.
Estou acreditando que qualquer gesto sincero de carinho nesse mundo é um tesouro. Pensava que o mundo era frio e distante. Tinha até hoje acreditado nisso, então eu preferí me encolher, ser mesquinho e egoísta também. Já era hora de descobrir que fiquei com mais dívidas com o mundo do que ele comigo.